Ainda e Sempre… a IVG, e o referendo de 11 de Fevereiro

Ainda e Sempre… a IVG, e o referendo de 11 de Fevereiro, originally uploaded by “Gayatri”.

A 3 dias do referendo, fico ainda preplexa com a quantidade de disparates que vai dizendo por aí, e ainda mais com a falta de informação que a maioria das pessoas ainda manifesta em relação ao tema…

Ontem participei num painel sobre o referendo, na qualidade de cidadã apoiante do SIM e Antropóloga de formação académica, que foi promovido por uma rádio local aqui das redondezas.

Os senhores da Plataforma Não, Obrigada não puderam comparecer, mas fizeram-se representar por uma médica que ainda teve o desplante de dizer que a IVG não é um acto médico(!), para além de que atenta contra o juramento de Hipócrates.

Para além de muitas outras pérolas, já muito repetidas em todos os argumentos mais demagógicos do não, a dita senhora acha que nós, os defensores do SIM, não temos a esperança como valor, e já não acreditamos no dia de amanhã, por isso a única coisa que sabemos é “oferecer” abortos às mulheres.

Não podia apelar mais ao sentimento banal da plateia, composta na sua maioria por marialvas do século passado, que acham que essa coisa do 25 de abril foi do pior que se fez em Portugal…

“Sim, porque no tempo do outro senhor, é que Portugal era uma país civilizado, respeitador da vida humana, dos valores e dignidades, e acima de tudo solidário com os mais desfavorecidos“…já não há paciência!!

Foi esta nossa audiência que também caiu na comparação fácil de igualar um aborto a um assassínio, extrapolando que se o SIM ganhar, porque é que não teremos também a legitimidade para matar quem nos incomoda ou é indesejado, como por exemplo um ladrão…

Felizmente que este tipo de argumentos já não convence ninguém, e chega até a ser incomodativo, mesmo para quem defende o Não, ou Nim (como parece que é moda agora…)

E assim, houve bastante receptividade por parte das pessoas a ouvir argumentos diferentes destas parvoíces sem sentido.

No sentido de deixar um testemunho escrito sobre a minha posição, aqui fica um mail que deixei, em jeito de apelo, às minhas colegas doulas, no dia 30 de Janeiro:
Imagino que todas nós já tenhamos pensado no assunto, quer à luz da nossa própria moral e consciência, quer à luz da maternidade, quer à luz do nosso papel como doulas.

E é à luz desse papel – de agentes pela defesa dos direitos da mulher durante a gravidez e o parto – que tenho cada vez mais convicção e certezas de votar sim.

Para mim não é aceitável defender que uma mulher tem direito a ver as suas escolhas respeitadas na altura do parto (contra tantos argumentos médicos que dizem que determinadas práticas, como o parto em casa, poem em risco a saúde do bébé…) e não lhes reconhecer o direito e a capacidade de decidir se querem ou não continuar com uma gravidez em estado embrionário e indesejada.

O que me leva a estas dissertações, é precisamente porque o que está a referendo no dia 11 de setembro são os direitos das mulheres.

Não sou a favor do aborto, nem conheço ninguém que o seja.
Conheço várias pessoas que já tiveram de o fazer, e não me parece que fosse justo que essas mesmas pessoas fossem presas, ou que tivessem de passar pela humilhação pública e devassa da sua vida privada ao enfrentarem um julgamento como criminosas no banco dos réus.

Sou pela vida, sempre fui.
Engravidei pela 1ª vez com 16 anos e fui mãe aos 17. Não fiz um aborto, ao contrário do que a minha família me aconselhou, e ao contrário do que uma professora de religião e moral católica me sugeriu em privado, no mesmo encontro em que me sugeriu deixar a escola para evitar a exposição pública.
Entretanto prossegui com uma gravidez no meu 12º ano, ao mesmo tempo que uma associação de pais de inspiração católica fez um pedido à directora da escola para que eu passasse a estudar à noite, porque achavam que o meu estado era um mau exemplo aos outros alunos…

Se o aborto fosse legal na altura, também não teria abortado. Tenho a certeza disso, porque foi uma decisão tomada em consciência, e apesar de ser uma gravidez não planeada, depressa passou a ser desejada.

Se vos trago aqui este relato tão íntimo é só para ilustrar a hipocrisia que reina por este país fora, onde se quer que as mulheres sejam mãe por castigo, vontade divina ou obrigação, mas não lhes dão qualquer apoio quando querem ser mães “fora do tempo”.

Uma gravidez na adolescência é uma enorme violência para qualquer mulher.
Uma gravidez não desejada traz sérios riscos para o normal desenvolvimento neurológico e psicoafectivo do feto, como devem bem saber.

E o que está em causa no referendo do dia 11 não é uma questão de consciência, mas sim a alteração de uma lei que criminaliza e penaliza as mulheres que recorrem à prática do aborto. (Da mesma maneira que, digo eu, poderia criminalizar quem optasse por um parto em casa ou totalmente desmedicalizado, quando este à luz da mentalidade vigente também é um atentado, ainda que mais velado, contra a vida do feto).

Apenas vos gostaria de fazer reflectir sobre o tema: todas nós aqui defendemos posições polémicas em relação ao parto nos dias que correm, e sabemos que estamos a lutar por uma mudança de mentalidades incutida numa sociedade patriarcal e medicamente ritualizada.
Sabemos, à luz do que se passa nos outros países, que estamos no caminho certo, e que mais cedo ou mais tarde as mudanças se farão sentir.
Sentimo-nos agentes da mudança, muitas de nós defendendo algo que nunca antes tinham pensado.

Da mesma forma, o aborto é algo que acontece desde os primórdios dos tempos, e está sujeito a mentalidades rígidas e anti-mudança.
Assumir que existe e querer resolver essa realidade da maneira mais digna possível é lutar pelos direitos das mulheres.
Continuar a criminalizar é ser anti-mudança, e mais grave de tudo: é achar que as mulheres são seres inferiores, sem capacidade de decisão, sem qualquer noção de moral e capazes de abortar por capricho ou leviandade.

Eu vejo as mulheres como seres plenamente capazes de tomarem as suas decisões, por mais polémicas e sacrificantes que sejam, e que fazem sempre o melhor que podem e conseguem, à luz da sua própria realidade e moral.
Não me cabe a mim julgá-las nem considerá-las criminosas.

Votar SIM não quer dizer que toda a gente passe a abortar “só porque sim”. Quer dizer que a mulher que tiver de fazer essa decisão, o fará com segurança e dignidade.

Para aquem ainda não sabe, eu sou doula. E é também à luz desse papel – de agente pela defesa dos direitos da mulher durante a gravidez e o parto – que, no meu ponto de vista, só podia votar sim. Para mim não é aceitável defender que uma mulher tem direito a ver as suas escolhas respeitadas na altura do parto (contra tantos argumentos médicos que dizem que determinadas práticas, como o parto em casa, poem em risco a saúde do bébé…) e não lhes reconhecer o direito e a capacidade de decidir se querem ou não continuar com uma gravidez em estado embrionário e indesejada.

Claro que para algumas das minhas colegas (poucas, felizmente) isto não faz qualquer sentido, porque, dizem elas, o bem estar do bébé também é sempre importante, e um parto humanizado também a ele traz benefícios.

– Houve colegas que me disseram:
É óbvio que respeitamos as escolhas das mulheres, mas o que está em questão cada vez que se fala do aborto é de um ser humano independente que não tem qualquer poder de decisão sobre a sua própria vida
Ao que eu respondo que, para mim, o feto (ou embrião, como lhe queiram chamar) não é um ser humano independente. É um ser vivo, em gestação, DEPENDENTE da mãe.

– Quanto à perguntas que me fazem relativamente à banalização do Aborto e consequente aumento, eu respondo:

“Legalizar leva as mulheres para os cuidados de saúde, e todos os estudos apontam para uma diminuição drástica da reincidência do aborto, quando é feito legalmente nos serviços de saúde, porque são aconselhadas e informadas quer acerca das alternativas a um aborto, quer em relação a métodos contraceptivos.
Manter na ilegalidade é fazer com que o negócio do aborto clandestino continue a movimentar dinheiro sujo, nas mãos de quem não tem qualquer preocupação moral ou social com as mulheres. E será isso que acontece com o Não.”

– E quando me dizem que não há mulheres presas por crime de aborto, eu respondo:

“É verdade, mas isso não é tudo…
Há mulheres que foram condenadas com pena suspensa, o que quer dizer que essa condenação lhes pesa no cadastro criminal, que tiveram de pagar uma multa e ainda por cima as custas judiciais do processo.E como é suspensa, qualquer infracção futura fará com que a dita pena seja cumprida!

Já para não falar da humilhação pública.
E a humilhação de passarem por exames ginecológicos? E a humilhação de verem a sua vida devassada?
Mesmo sem pena de prisão, estas mulheres ficam marcadas para toda a vida, de forma humilhante.
Vou-vos contar uma coisa: há pouco mais de dois anos conheci uma das muitas mulheres que foi a julgamento pela prática de aborto.
Sabem que mais? Ela estava grávida na altura, de uma gravidez planeada e desejada quando foi acusada pelo ministério público.
Passou o vexame de ser arguida com termo de identidade e residência, estando grávida de cerca de 24 semanas.
Teve um aborto espontâneo causado por tanta ansiedade e stress, e no resultado dos exames a que foi obriga a submeter-se no ambito da investigação criminal do processo.
É isto que a actual lei contempla, não tenhamos ilusão.”

– Quanto me questionam em relação ao direito à vida, essa é uma questão filosófica e moral à qual cada pessoa tem o direito de responder à luz das suas próprias convicções, sem querer impor as mesmas aos outros.

“Para mim tem mais valor a vida de uma mulher, que terá a sua história de vida, o seu passado, o seu intelecto e as suas convicções do que a vida de um embrião de 10 semanas.

Além do mais, o actual estado de coisas com a prática generalizada e epidémica de aborto clandestino, não salva nenhuma vida, antes pelo contrário!”

– Mas fico muito triste quando ouço argumentos do “orgulhosamente sós”, relembrando os tempos do fascismo em portugal e da obstinação do salazar em nos manter afastados da europa e da modernidade.
Ainda hoje estamos a pagar o preço disso!

Também me irrita solenemente compararem a despenalização do aborto com a pena de morte e dizerem que Portugal foi o primeiro país da Europa a abolir a pena capital…
Então e as centenas de mortos do tarrafal durante o regime fascista, não foram pena de morte? As centenas de torturados pela pide, não foram uma forma velada de pena de morte?
A Catarina Eufémia, que morreu grávida de poucos meses, com um filho pequeno nos braço e um tiro nas costas enquanto pedia pão para os filhos, não foi assassinada???

Mas como me considero uma pessoa tolerante, aceito e respeito profundamente quem pense de maneira diferente.
E por isso é que voto SIM – para não impor o meu código de valores morais, religiosos e éticos aos demais, e permitir que cada um tenha a sua própria decisão, de forma respeitada e informada.

Lamento que as pessoas se esqueçam que vamos referendar a alteração de uma lei, e não a aplicação de determinado código de valores morais e filosóficos a toda a gente.

A mim repugna-me tanto ver mulheres criminalizadas pela prática de aborto, como ver as atrocidades que são cometidas contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres num hospital durante o parto.

 

 

4 Comments

  1. Concordo plenamente contigo e respeito muitissimo a tua convicção e vontade de mudar mentalidades. Substimar o poder da mulher como mãe e cidadã é por si já um crime. No Domingo algo mudará. O teu papel interventivo tem sido essencial, diria eu.

    Obrigada !

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  2. Olha Rita, eu já era tua fã mas agora que sei que és doula, ainda sou mais!
    Admiro-te pela maneira como defendes aquilo em que acreditas sem, no entanto, ofenderes ou julgares aqueles de quem discordas. O meu sim é igual ao teu, só que eu não sei falar tão bem :)
    Um beijinho e PARABÉNS

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