é a trabalhar que a gente paga o jantar…

… mas foi a trabalhar que a gente fez a faca para o cortar.

Este refrão do Sérgio Godinho, escrito em 76, em pleno PREC, tem muito que se lhe diga.

“é a trabalhar que a gente paga o jantar”

certo. sem dúvida.

“mas foi a trabalhar que a gente fez a faca para o cortar”

Aqui é que fico fascinada com as inúmeras leituras que pode ter:

A faca para o cortar simboliza o operário que terá efectivamente feito um objecto – a faca – utilizando os meios de produção de um patrão?

Ou será a fome, que se acentua ainda mais com o esforço do trabalho?

Não sei.

Conhecço esta música desde pequenina – o nome do álbum que a edita é precisamente “De pequenino se torce o destino” – e sempre me fascinou.

Porque é que hoje a trago até aqui, tão desenquadrada de tudo?

Por causa do episódio Deolinda, pois claro.

Nada tenho contra os Deolinda, antes pelo contrário, e acho a música “que parva que sou” realmente genial e hino de uma certa geração, que talvez será a minha.

(in)felizmente, não partilho uma série de angústias com os meus contemporâneos, nem tão pouco a minha realidade é a dos demais. Não sei o que é estar a estudar – no ensino superior – sem estar a sustentar os meus próprios estudos, assim como não sei o que é ter 20 e poucos anos, e andar à procura de um primeiro emprego, sem grandes obrigações nem responsabilidades na vida. Quando o fiz já tinha o peso (bom!) de dois filhos para “sustentar”.

Posto isto, e feitas as devidas ressalvas, sou solidária com todos aqueles e aquelas que comigo cresceram e estudaram, que tinham uma ideia de vida, que eram trabalhadores, empenhados e inteligentes, e continuam numa vida perpetuadamente adiada, sem perspectivas, sem salário, sem mais nada que seja a desilusão e o sonhar com futuro que há-de vir. nem que seja tarde de mais…

Não acho que a “culpa” da situação actual seja do excesso de licenciados, nem da falta de operários especializados, como tanto já se insinuou por aí. Tanto uma como outra realidade são antes de mais fruto da tal geração anterior, que desbaratou o futuro do país, que não soube ter nem visão nem estratégia. Que empurrou os jovens adultos de hoje, os meus contemporâneos, para um futuro incerto e adiado.

Mas acho que a esta geração, a minha, tem de ser apontada outro tipo de culpa. A despolitização e o descomprometimento político-social. O achar que “não é nada comigo”. A indiferença.

Se no PREC era in ter posição política e toda a gente sabia se era de direita ou de esquerda, agora é out falar de política, “os políticos são todos a mesma coisa”, “os partidos não servem para nada”, esquerda e direita são apenas conceitos de lateralidade geografico-espacial, e votar não serve de nada.

É esta precisamente a geração que está encurralada e sem saída. “que parva que sou” que não me preocupei com o mundo à minha volta enquanto ele não me bateu à porta, podiam dizer os Deolinda.

Voltemos então ao Sérgio Godinho, nome conhecido por todos e obra desconhecida por muitos. Voltemos às canções de intervenção, se com isso despertarmos consciências. Venham Deolindas e outros que tais cantar gritos de revolta.

Esperemos é que quando chegarem melhores dias não se esqueçam que a luta é feita todos os dias, e não só quando nos convém.

Uma sociedade justa e solidária constrói-se todos os dias e precisa do empenho de todos.

Levanto-me, acordo cedo
vou para um trabalho que para mim
não tem segredos
a minha vida não é para atirar ao lixo
não sou coisa nem sou bicho
nem sou carne para canhão, não!

Quem me usa não me merece
só merece o meu desprezo quem abusa
da minha força e da minha competência
e até mesmo da impaciência
de dar de comer aos meus filhos

É a trabalhar
que a gente paga o jantar
mas foi a trabalhar
que a gente fez a faca para o cortar

Se hoje ainda vivo afaimado
quem me domina tem os seus dias contados
a minha luta não é sozinho que a faço
tem tantos no mesmo passo
braço a braço somos muitos

É a noite, quando adormeço
é como fazer a viagem de regresso
para um outro dia, um manhã mais libertado
com as correntes no passado
e a certeza no futuro

É a trabalhar
que a gente paga o jantar
mas foi a trabalhar
que a gente fez a faca para o cortar

9 Comments

  1. Rita,
    só hoje é que vi este texto. Adorei!
    Se puderes, continua a escrever com a regularidade a que nos habituaste. Eu sei que quantidade não é necessariamente igual a qualidade mas, no teu caso, costuma ser e fazes falta.
    Beijinhos!

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  2. Faca…simbologia da nossa capacidade de lutar, de continuarmos merecedores da vida e da vitória, que corta com um mundo de traições e resignação!
    Mais do que nunca, actual.

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  3. Exactamente o que penso. Muito bem dito! A minha realidade também não foi essa, foi a de começar a trabalhar muito cedo e pela faculdade fora. E sim, a indiferença, a falta de pensamento próprio, de pensamento crítico é o que mais me revolta, nesta geração e nos dias que correm.

    Obrigada pela brilhante reflexão. Beijinhos.

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  4. Ola Rita, que grande verdade, uns com mais, outros menos e e outros sem nada. Assim se faz ver o descaso dos políticos do mundo inteiro, que tem soluções para tudo , enquanto não estão no poder , depois que lá se encontram ESQUECEM DE TODAS AS SUAS PROMESSAS DE PALANQUE. E tudo continua igual ou pior.

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