José e Pilar

“José e Pilar” também poderia chamar-se “vida e morte”.

O mais recente filme de Miguel Gonçalves Mendes relata 3 anos da vida de José Saramago. 3 anos intensos e especiais. Neles, o escritor vê nascer a Biblioteca com o seu nome, em Lanzarote, a Fundação Saramago em Lisboa, a estreia da adaptação de Ensaio sobre a Cegueira pela mão de Fernando Meireles, recebe a nomeação de Doutor Honoris Causa pela Universidade Autónoma de Madrid, a inauguração da grande exposição, comissariada por Fernando Gómez Aguilera, intitulada José Saramago. A Consistência dos Sonhos, volta a contrair matrimónio com Pilar del Rio, regressa à sua Azinhaga natal para lançar “As Pequenas Memórias” e celebrar o seu aniversário, e viaja incessantemente pelo mundo fora, a participar em sessões de autógrafos, apresentações públicas, conferências, entrevistas.

Entre todos estes eventos adoece com gravidade, passa por um período de convalescença e recupera. Começa e termina “AViagem do Elefante”, e inicia aquele que virá a ser o seu último romance editado em vida – “Caim”.

E em todo o filme, a vida pulsante, cheia de vontade, de ganas como diria Pilar, anda de mãos dadas com uma certa nostalgia com a ideia da morte. Não só porque Saramago é constantemente interpelado à conta das suas perspectivas filosóficas acerca da religião, espiritualidade e morte, mas porque a sua idade avançada e a doença que o assolou trazem ao espectador, e ao próprio Saramago, a ideia da falta de tempo, a ideia de que a morte não tarda a chegar e há ainda tanto para fazer. Terá Saramago recebido um daqueles envelopes violeta assinados pela própria Morte, ou será que ele viveu esse período de intermitência que ela concedeu a alguns?…

José e Pilar é uma história de vida. Não uma história de amor, romanceado, como poderia fazer crer o título. Pilar é uma constante, é “o meu pilar”, “aquela que ainda não tinha nascido, e que tanto tardou em chegar”.

O amor tem muitas formas, mais ainda são as suas manifestações, e Pilar é a personificação do amor à vida, à criação literária, ao respeito pela vida humana, que tanto caracteriza o homem – José.

Confrontar-se com a morte, com o que ele chama de falta de tempo, e ainda assim continuar, cheio de vida e vontade de viver é um dos legados humanistas de Saramago. É ao mesmo tempo uma crítica severa a este tempo em que se vive sem dar por nada, onde o egoísmo nos fecha aos outros, onde se sobrevive sem se perceber o privilégio que é o acordar de cada dia. É a história de Salomão, o elefante que empreende uma viagem singular e no final vê as suas patas que percorreram milhares de quilómetros serem transformadas em receptáculos de bengalas.

É um filme obrigatório. Mostra um Saramago que muitos desconhecem, e que outros tantos teimam em ignotamente colar à imagem de “comunista inacessível e arrogante”.

É um instantâneo da vida de um homem que diz que “a língua Portuguesa é a mais bonita do mundo” e que o título que gostava de ter escrito seria “o livro do desassossego”, pois “gostava que todos os meus livros fossem considerados livros de desassossego”.

Desassosseguemo-nos pois com Saramago, já que segundo a própria Pilar, “a sociedade actual ainda não se apercebeu que foi contemporânea de um génio”.

1 Comments

  1. Rita, obrigada por este texto!

    Adoro o teu trabalho, mas gosto ainda mais de te ler quando escreves sobre todas as outras coisas.
    Este texto merecia figurar nas melhores críticas a este filme. Já o vi, adorei, li várias críticas mas nenhuma tão boa como esta.
    Parabéns!

    (e por favor, continua a escrever…)

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